Seria o desenvolvedor de software um profissional com prazo de validade?

Dímitre Moita, Psicólogo, doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará.

Há oito anos venho pesquisando a atividade de desenvolvedores de software, uma trajetória de pesquisa que se iniciou no meu trabalho de conclusão de curso em Psicologia, passou pelo mestrado, também em Psicologia, e agora é objeto de minha tese doutoral. Busquei ao longo desses anos compreender como se organiza a produção de software, qual a precariedade presente na atividade dos desenvolvedores e quais os efeitos sobre suas vidas e rotinas. Fui orientado desde o começo a escutar os trabalhadores e a procurar estudos que fizessem o mesmo, afinal de contas, se deseja saber algo, vai na fonte. Após algum tempo de pesquisa, me coloquei a seguinte questão: seria o desenvolvedor de software um profissional com prazo de validade? Ainda hoje não posso respondê-la, mas buscar compreender por que me fazia essa questão foi um exercício esclarecedor. Exercício que compartilho com os Infoproletários com o desejo de ampliar o diálogo acerca da instabilidade e do desgaste experimentado pelas trabalhadoras e trabalhadores da indústria de software.

Produzir software, conviver com altas exigências

Em 2012, 51% da mão de obra empregada na Indústria Brasileira de Software e Serviços de TI (IBSS) situava-se na faixa etária de 18 a 29 anos. Já na ponta oposta do espectro etário, com 50 anos ou mais, estavam apenas 6,7% do total de empregados, ocupando, geralmente, cargos de direção. Este dado estatístico poderia ser explicado pelo recente desenvolvimento da indústria de software brasileira, mas, quando considerado ao lado dos dados qualitativos que seguem, é possível perceber outros fatores, ligados à atividade de desenvolvimento de software, que colaboram para a constituição dessa pirâmide etária.

Aline Pires, socióloga da Universidade Federal de São Carlos, que discute o discurso da flexibilidade em torno da geração “Y”, refere-se, a partir da fala de um de seus entrevistados, a um “perfil incansável” que é esperado desses trabalhadores. Os desenvolvedores devem despender  grandes esforços pessoais para manter-se sempre atualizados e aptos a atuar nos mais diversos projetos, adaptar-se a espaços e horários comumente cambiantes, responder a exigências incessantes por criatividade e inovação, lidar com a insegurança proveniente de contratos flexíveis e fazer frente a pressão por prazos e resultados. Requisições que geram estresse e desgaste, contribuindo para o rápido envelhecimento desses trabalhadores.

Marisa D’Mello e Sundeep Sahay (2007), pesquisadores da Universidade de Oslo, Noruega, ao investigar as relações entre mobilidade, lugar e identidade entre desenvolvedores indianos, observam que esses trabalhadores precisam realizar um malabarismo entre vida pessoal e profissional. Um de seus entrevistados afirma que o desenvolvimento de software é um trabalho de aposentadoria prematura após explicar que as pessoas de TI deixam de aproveitar suas vidas, por causa de extensas jornadas de trabalho e horários estranhos.

Além das jornadas extensas no ambiente de trabalho, que chegam a passar das 14 horas quando há implementação ou suporte, o desenvolvimento de software é uma atividade que facilmente acompanha o trabalhador para além do espaço-tempo dedicado ao trabalho. É comum colher relatos de desenvolvedores que afirmam passar horas fora do trabalho “cismando” com problemas lógicos e suas possíveis soluções. Tal exigência cognitiva é associada a um limite de duração por um desenvolvedor argentino entrevistado pela psicóloga Andrea Pujol, da Universidade Nacional de Córdoba, ele afirma: “eu não penso que posso continuar assim durante 10 ou 15 anos […] às vezes, à noite, continuo pensando nas tarefas e é difícil conciliar o sono”.

Stéphanie Chessario e Marie-Josée Legault, da Universidade de Quebec, Canadá, ao discutirem os riscos à saúde pertinentes à gestão por projetos, modelo de gestão sob o qual trabalham as empresas de software, constatam que, na realidade canadense, é comum que o desgaste sentido pelos trabalhadores justifique a busca por ambientes menos instáveis. Entre empresas de consultoria em informática e da indústria de videogames, a média de idade dos trabalhadores é baixa e aqueles de mais idade deixam esses ambientes em busca de empresas públicas ou de grandes empresas sindicalizadas.

Em minha pesquisa de mestrado, quando realizei entrevistas semiestruturadas com seis desenvolvedores de software acerca da precariedade em suas atividades, observei que as percepções sobre ascensão na carreira eram distintas segundo a faixa etária ocupada pelos trabalhadores. Enquanto os mais jovens do grupo (23 e 24 anos) valorizavam a flexibilidade e a rotatividade no trabalho como meios para obter novas experiências e enfrentar novos desafios, entre os menos jovens (32 e 48 anos) percebiam-se obstáculos consideráveis a ascensão.

Essa constatação se aproxima do observado pelas sociólogas da Universidade Federal do Paraná, Maria Aparecida Bridi e Benilde Motim, de que as condições mais vulneráveis de contratação são mais comuns no início da carreira no setor, e possivelmente justificadas como meio para adquirir experiência. Após algum tempo de profissão, os trabalhadores procuram o vínculo formal de trabalho, buscando estabelecer-se por conta própria ou tornando-se PJ da empresa em que trabalham, o que não necessariamente representa uma fuga do desgaste gerado pela atividade.

Tanto Aline Pires quanto a socióloga da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Cinara Rosenfield, concordam que as formas flexíveis de contratação são valorizadas nos primeiros anos de profissão, até que passam a ser questionadas diante do surgimento de maiores responsabilidades que vêm, por exemplo, com a constituição de família. Rosenfield, em pesquisa com 22 quadros médios-superiores e superiores de empresas de TI, discute um sentimento de fragilização entre os profissionais, e que este é observado entre os menos jovens, casados e com filhos pequenos, mas não entre os jovens, solteiros e sem filhos. Se entre os mais jovens o mercado de trabalho é considerado mais atrativo por representar autonomia e aventura, entre os mais velhos surge a necessidade de equilibrar aventura e certo nível de segurança.

Em busca de estabilidade e segurança

A insegurança, a instabilidade e o desgaste presentes na profissão parecem apontar para três alternativas principais: a busca por atividades mais “leves” no setor de TI; a ocupação de cargos de direção; ou a saída definitiva da área. Exemplifico a seguir como cada uma dessas alternativas foi encontrada em minha pesquisa.

Érico, um desenvolvedor de 32 anos entrevistado em minha pesquisa de mestrado e aqui referido por pseudônimo, descreve sua preocupação com a garantia de um futuro mais estável e menos sobrecarregado, buscando uma fonte de renda mais “leve” do que o trabalho na empresa de consultoria em que trabalhou. Sua aspiração é de construir um sistema de automação que possa vender a empresas, que lhe garanta uma renda extra com a manutenção e com o qual não precise se preocupar tanto.

Os desenvolvedores que alcançam ascensão dentro de suas empresas passam a ocupar cargos de gestão, tais como gerente de negócios ou coordenadores, cargos que permitem, inclusive, certa estabilidade, sobretudo se considerarmos que há empresas que operam com um quadro fixo mais enxuto, formado pelos trabalhadores de gestão, recorrendo à contratação de pessoal flexível mediante demanda. Porém, não é razoável supor que esta alternativa eliminaria as sobrecargas de trabalho, uma vez que, como descreve Cinara Rosenfield, há um processo de precarização da atividade dos quadros médios-superiores e superiores das empresas de TI.

A saída definitiva da área seria a última alternativa elencada. Amaral, um analista de sistemas de 48 anos, também entrevistado em minha pesquisa de mestrado e aqui referido por pseudônimo, expressou o desejo de abandonar a profissão, contudo, a idade surge como um impeditivo para realizar uma reorientação de sua vida laboral. Buscar um mercado de trabalho que não o de TI se torna particularmente delicado e complicado quando não se dispõe de outra formação e nem há condições seguras de empreendê-la.

Considerações Finais

Não tenho a pretensão de responder à questão se seria o desenvolvedor de software um profissional com prazo de validade, contudo, evidenciar as condições que permitem enunciá-la torna perceptível que há algo de contraditório na atividade desses trabalhadores. A ideia de um desgaste entre os desenvolvedores de software que lhes imporia um prazo de permanência na profissão chama atenção por revelar uma realidade de trabalho que leva as exigências do capital sobre o trabalhador a um extremo com tons de ineditismo e influir sobre a expectativa de futuro que é possível construir diante desse quadro. Os ritmos alucinantes, as altas demandas físicas e cognitivas, os modos flexíveis de contratação, a grande pressão por resultados e atualização constante e a invasão da vida pessoal pelo trabalho parecem construir um ambiente em que os desenvolvedores se consomem como produtos, com um prazo que pode se estender mais adiante ou mais brevemente no futuro.

Referências Bibliográficas

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D’MELLO, Marisa; SAHAY, Sundeep. “I am kind of a nomad where I have to go places and places”… Understanding mobility, place and identity in global software work from India. Information and Organization, v. 17, n. 3, p. 162-192, 2007.

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MOITA, Dímitre. Computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro: análise da atividade dos desenvolvedores de software. 2015. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, 2015.

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